Thursday 25 September 2008

Suspenso

foto obtida aqui


Vejo-te, intermitente, enquanto agarro-me a esta parede escorregadia, coberta de musgo.
Arrasto-me na vertical, atinjo o patamar, um arco vazio no meio de nada.
Já não existem salas ou quartos, tudo é vento e chuva.
Agora sou e existo, de braços erguidos, a pintura nos olhos diluída pela água,
a roupa negra beijada de verde e terra, sujo-me entusiasticamente!
Sou besta selvagem em projecção sobre as paredes,
sou demónio fantasma guardião de colunas e fornos de pedra...
Solto rugidos em fúria, urro sobre os ventos,
gestos frenéticos perdem-se de mim em loucura desenfreada,
e um olhar vidrado dirigido aos céus,
não há tectos, também, neste meu reino,
tudo partido e perdido sobre o chão,
tudo velho e gasto e usado,
como esta alma acorrentada...
Atiro-me num vôo, asas de anjo negro, sorrio.
Vejo-te, intermitente, enquanto meu olhar é tinta negra e pálpebras negras.
Pausado o tempo, preso no espaço, restas tu.



A ti, Shu. Ainda. *08

Wednesday 13 August 2008

Criogenia

>foto obtida aqui


Um dia, apenas...
E abrem-se perspectivas de silêncios,
começam os kilómetros a consumir sentimentos.
Ou talvez seja exactamente o contrário.
Neva na noite, nevou ontem,
esfria-se a terra.
Tremores, arrepios.
Dói, calares-te.
Tu e tu e tu.
Circunstâncias,
queria ter voz e matar,
queria gritar e berrar,
inspirar tua mágoa,
beber-te e consumir-te.
Um dia, apenas,
bastou pra me deixar mais só.
Tempo, voa, traz-me o amanhã...
Venda-me o olhar,
press pause,
hold still,
stop all the clocks,
venda-me o olhar.
Volta. Volta. Volta.
Tremores, arrepios.
Dói, calares-te.
Tu e tu e tu.



*08

Sunday 3 August 2008

Transparências Flutuantes

foto obtida aqui


Transparências flutuantes, medusas fantasmas em busca de côr.
Um mar de outra voz, ondulação de desejos.
Terra que chora, palpitações de núcleos.
Fumaças estáticas desprendem-se dos lábios.
Tudo unido numa harmonia geral.
Numa conjugação de factores na criação dos factos.
O cair das pálpebras na procura de uma fotografia mais real.
O nascer de uma forma palpável.
Transformação de uma ideia abstracta num sentimento de tijolos e cimento.
Como corpos físicos a desafiar a gravidade.
Sem asas, sem propulsores.
Como transparências flutuantes, medusas.
O canto arrepiante das aves.
O grito agudo das águias.
Um esgar que nasce no fundo da garganta.
Um abrir de braços em pleno vazio.
Tentativa frustada de agarrar o que não se vê.
Distúrbio nas canções que cantam nos peitos.
A suplicação a entidades que nunca respondem.
Encostar cansado das mentes nas janelas.
Vibrações nas ondas eletromagnéticas.
A propagação no coração.
Comunicação telepática, de mundos que se amam.
A paz numa lente dirigida ao céu.
Um raio incorpóreo em busca da verticalidade.
Sem limites, estratosfera.
Como transparências flutuantes, medusas.
Tudo é tanto, tudo é belo.
Como tu no meu mundo.
Fazendo-me Viver.


A ti, Shu. *08

Tuesday 29 July 2008

Vermelho de Sangue

foto de VITOR SHALON obtida aqui


Ou asas nas pedras,
sobre os riachos das aldeias,
sobre as águas fugidias...
e lavadeiras que cantam,
sóis que cegam o fascínio
de quem vive,
de quem grita,
ou cantantes rouxinóis,
verdes quetzais,
dormindo nas copas das árvores...
...e correm os miúdos,
fugindo dos pesadelos,
dos monstros debaixo da cama,
fogem dos choros desalmados,
dos agudos gritos de terror,
dos olhos esbugalhados,
das pernas tremidas,
dos corações aos pulos...
... e correm os graúdos,
fugindo de tudo e de nada,
do real e do desconhecido,
do céu e do abismo,
da vida e da morte...
....ou santos que vertem
o sangue de Deus,
ou almas penadas que
se vêem ao espelho,
ou anjos caindo em
estradas desertas,
ou peixes cantando os versos do mar...
...e matam-se os jovens
julgando amar,
ou berram guitarras
as dores de quem cai,
e saltam as pernas
de quem não sabe voar,
bebendo lareiras
os poemas de amor...
...e sopram os ventos
sobre os cabelos sonhados,
beijos de chuva
sobre a pele escaldante,
ou arrepios saudosos
de quem não se droga,
saudades caídas de
quem se tortura,
e muralhas de aço
erguidas por árvores,
olhando as gentes
vestidas de sangue
sob a sua sombra,
ou pragas ao Sol
e insultos à Lua,
porque já nada explica
porque é que estas gentes de
vermelho insistem em sorrir...
*02

Sunday 27 July 2008

Anjo

Imagem obtida aqui



Ser então um anjo, talvez...
Daqueles que voam, que sorriem,
espalhando os ventos pelas planícies,

as neves pelas montanhas,
os sóis pelos desertos...
E brilhar, de olhos fechados,
batendo as asas sobre o mar,
levando nas mãos estes sonhos,
estes sons,
estas imagens perdidas,
de quem não tem e quer ter,
de quem sonha...
Sonhar, pois,
cantando e voando,
em silêncio, em paz,
num gesto sereno, apaixonado,

de quem sabe que ama...
de quem é amado...
E transformar este céu no chão,
as nuvens em algodão,
em neve quente,
em refrescantes sóis!
Largar o ser verde,
arrancar o pó às vestes
de quem merece desposar
a princesa,
esquecer a tirania dos deuses,
perdoar a insolência da plebe,
a tortura dos quilómetros...
Sim! Ser anjo!
Voar até à outra ponta da
eternidade, do infinito,
cair de cansaço nesta lua
que se exibe aos nossos olhos,
beber a chuva das estrelas
e descansar nesse leito,
nesses braços, nesse colo...
E nadar nessas retinas,
nessa alma,
afogar-me na tua voz,
no ar que respiras,
ébrio de amor,
de inconsciência,
de felicidade...
Talvez amanhã...
Talvez um dia...
Sim, serei anjo... por ti....



*98

Peixe e Pão

>foto obtida aqui


Acordei esmagado por um peso enferrujado que me corroía o coração.
Dirigi o olhar, turvo e cansado, para a janela semiaberta e por entre as cortinas vislumbrei o cinzento de Outono...
Adivinhei o regresso à calma.
Sentei-me no banco. Há demasiado tempo que não ia àquele jardim. Continua tudo na mesma. As ondas insistem em procurar alcançar a lua, o areal mantém a indiferente calma para suportar as suas quedas... e as pessoas continuam sem aparecer, parece que só eu compreendo a beleza e a magia daquela paisagem.
Melhor assim, isto perde a piada toda quando o povo surge...
Vi este pássaro em forma de gaivota a explorar o ar minuciosamente, tenho até a impressão de que não é a primeira vez que o vejo.
"Ò Fernão! Anda cá! Queres pão?" - gritei eu, mas o raio do bicho ignora-me, prefere o peixe que apanha por ele mesmo. E está certo, vou aconselhar os pombos a largar o raio dos monumentos... Começa a escurecer. Não fossem as nuvens, magníficas residências aéreas de deuses outrora homens, haveria ali um ocaso daqueles...
Prós e contras.
Envolto na escuridão, puxo de um cigarro e começo a divagar... quem me dera ter a minha viola aqui, poderia então divagar musicalmente... começo no passado, como sempre, recordações que doem. Mágoas julgadas esquecidas, nódoas negras que se assemelham a buracos negros devoradores de sóis distantes...
Vejo uma estrela cadente. Suspiro um desejo em silêncio, enquanto a primeira lágrima se aventura na existência...
Sorrio ironicamente, primeiro por saber que confundir os modos temporais neste texto não tem lógica nenhuma, depois por me lembrar de estar lá sentado, à beira-mar, em plena madrugada, sorrindo também ironicamente, ao constatar que o meu único desejo era voltar atrás no tempo...
Deito fora a beata e abraço-me.
Estou só... onde pára o mundo? Porque tarda tanto em parar?... a tortura satura-me, já não aguento mais...
Queria que descesse um anjo dos céus e me dissesse: "Acabou. Baza comigo." - e eu ia.
Sem pestanejar.
Arrancar-me deste chão, duro e frio, húmido de lágrimas, suor e sangue...
As minhas lágrimas...
O meu suor...
O meu sangue...
Deito-me enquanto acabo o último cigarro. Está frio...
Sim, esquece essa merda. Dorme e sonha. Afinal, o que é que te resta?
Até amanhã.



*98