Tuesday, 29 July 2008

Vermelho de Sangue

foto de VITOR SHALON obtida aqui


Ou asas nas pedras,
sobre os riachos das aldeias,
sobre as águas fugidias...
e lavadeiras que cantam,
sóis que cegam o fascínio
de quem vive,
de quem grita,
ou cantantes rouxinóis,
verdes quetzais,
dormindo nas copas das árvores...
...e correm os miúdos,
fugindo dos pesadelos,
dos monstros debaixo da cama,
fogem dos choros desalmados,
dos agudos gritos de terror,
dos olhos esbugalhados,
das pernas tremidas,
dos corações aos pulos...
... e correm os graúdos,
fugindo de tudo e de nada,
do real e do desconhecido,
do céu e do abismo,
da vida e da morte...
....ou santos que vertem
o sangue de Deus,
ou almas penadas que
se vêem ao espelho,
ou anjos caindo em
estradas desertas,
ou peixes cantando os versos do mar...
...e matam-se os jovens
julgando amar,
ou berram guitarras
as dores de quem cai,
e saltam as pernas
de quem não sabe voar,
bebendo lareiras
os poemas de amor...
...e sopram os ventos
sobre os cabelos sonhados,
beijos de chuva
sobre a pele escaldante,
ou arrepios saudosos
de quem não se droga,
saudades caídas de
quem se tortura,
e muralhas de aço
erguidas por árvores,
olhando as gentes
vestidas de sangue
sob a sua sombra,
ou pragas ao Sol
e insultos à Lua,
porque já nada explica
porque é que estas gentes de
vermelho insistem em sorrir...
*02

Sunday, 27 July 2008

Anjo

Imagem obtida aqui



Ser então um anjo, talvez...
Daqueles que voam, que sorriem,
espalhando os ventos pelas planícies,

as neves pelas montanhas,
os sóis pelos desertos...
E brilhar, de olhos fechados,
batendo as asas sobre o mar,
levando nas mãos estes sonhos,
estes sons,
estas imagens perdidas,
de quem não tem e quer ter,
de quem sonha...
Sonhar, pois,
cantando e voando,
em silêncio, em paz,
num gesto sereno, apaixonado,

de quem sabe que ama...
de quem é amado...
E transformar este céu no chão,
as nuvens em algodão,
em neve quente,
em refrescantes sóis!
Largar o ser verde,
arrancar o pó às vestes
de quem merece desposar
a princesa,
esquecer a tirania dos deuses,
perdoar a insolência da plebe,
a tortura dos quilómetros...
Sim! Ser anjo!
Voar até à outra ponta da
eternidade, do infinito,
cair de cansaço nesta lua
que se exibe aos nossos olhos,
beber a chuva das estrelas
e descansar nesse leito,
nesses braços, nesse colo...
E nadar nessas retinas,
nessa alma,
afogar-me na tua voz,
no ar que respiras,
ébrio de amor,
de inconsciência,
de felicidade...
Talvez amanhã...
Talvez um dia...
Sim, serei anjo... por ti....



*98

Peixe e Pão

>foto obtida aqui


Acordei esmagado por um peso enferrujado que me corroía o coração.
Dirigi o olhar, turvo e cansado, para a janela semiaberta e por entre as cortinas vislumbrei o cinzento de Outono...
Adivinhei o regresso à calma.
Sentei-me no banco. Há demasiado tempo que não ia àquele jardim. Continua tudo na mesma. As ondas insistem em procurar alcançar a lua, o areal mantém a indiferente calma para suportar as suas quedas... e as pessoas continuam sem aparecer, parece que só eu compreendo a beleza e a magia daquela paisagem.
Melhor assim, isto perde a piada toda quando o povo surge...
Vi este pássaro em forma de gaivota a explorar o ar minuciosamente, tenho até a impressão de que não é a primeira vez que o vejo.
"Ò Fernão! Anda cá! Queres pão?" - gritei eu, mas o raio do bicho ignora-me, prefere o peixe que apanha por ele mesmo. E está certo, vou aconselhar os pombos a largar o raio dos monumentos... Começa a escurecer. Não fossem as nuvens, magníficas residências aéreas de deuses outrora homens, haveria ali um ocaso daqueles...
Prós e contras.
Envolto na escuridão, puxo de um cigarro e começo a divagar... quem me dera ter a minha viola aqui, poderia então divagar musicalmente... começo no passado, como sempre, recordações que doem. Mágoas julgadas esquecidas, nódoas negras que se assemelham a buracos negros devoradores de sóis distantes...
Vejo uma estrela cadente. Suspiro um desejo em silêncio, enquanto a primeira lágrima se aventura na existência...
Sorrio ironicamente, primeiro por saber que confundir os modos temporais neste texto não tem lógica nenhuma, depois por me lembrar de estar lá sentado, à beira-mar, em plena madrugada, sorrindo também ironicamente, ao constatar que o meu único desejo era voltar atrás no tempo...
Deito fora a beata e abraço-me.
Estou só... onde pára o mundo? Porque tarda tanto em parar?... a tortura satura-me, já não aguento mais...
Queria que descesse um anjo dos céus e me dissesse: "Acabou. Baza comigo." - e eu ia.
Sem pestanejar.
Arrancar-me deste chão, duro e frio, húmido de lágrimas, suor e sangue...
As minhas lágrimas...
O meu suor...
O meu sangue...
Deito-me enquanto acabo o último cigarro. Está frio...
Sim, esquece essa merda. Dorme e sonha. Afinal, o que é que te resta?
Até amanhã.



*98